17 março 2024

Alemanha e Israel

Birkenau, 2014. Oil on canvas, 8 ft. 6 3/8 in. x 78 3/4 in. (260 x 200 cm).
Private Collection. © Gerhard Richter

 

Aqui a dorminhoca só reparou hoje que a Almanaque Mag já saiu em Fevereiro. Isso foi, segundo as minhas contas, duas séries de correrias antes daquelas em que ando agora metida. Em plena Berlinale. Não importa: aí está o artigo que escrevi em Novembro de 2023 sobre a Alemanha e Israel. Nasceu de uma necessidade forte que senti na altura de explicar um pouco mais sobre os motivos do comportamento da Alemanha perante os crimes terríveis que Isael estava (e continua) a cometer em Gaza. Algumas passagens já não são muito actuais. Entretanto Israel já triplicou o número de civis que matou em Gaza; os próprios políticos alemães e a população começaram a criticar mais abertamente o governo de Israel; na altura, Geert Wilders era o vencedor das eleições nos Países Baixos, e havia notícias sobre o medo sentido por muçulmanos naquele país - neste momento, já vimos que mesmo que a direita populista ganhe eleições, é possível proteger a democracia. Mesmo assim, o artigo não envelheceu tão mal como temia.


Leiam, e digam o que vos parece.

https://almanaquemag.com/alemanha-e-israel/

15 março 2024

"limpar Portugal"...


Lembram-se do João Miguel Tavares no discurso do 10 de Junho a choramingar, implorando aos políticos “dêem-nos algo em que acreditar”?

“Algo em que acreditar” é mais coisa da religião, mas, pelos vistos, João Miguel Tavares encontrou finalmente para si “o caminho, a verdade e a vida” na política. Não descansa enquanto não meter o São Mentiroso-Compulsivo no governo.

Tempos houve em que João Miguel Tavares se amofinava muito contra Sócrates, chamava-lhe mentiroso-compulsivo, acusava-o de não ter carácter. Parecia o discurso de uma pessoa com sentido de decência. Afinal, não. Agora que se tornou o profeta da nova seita do ódio e do quanto-pior-melhor, é fácil imaginá-lo a desculpar-se, parafraseando o outro: “Talvez este seja um mentiroso-compulsivo, mas é o nosso mentiroso-compulsivo.”

O milhão de portugueses que deram o seu voto ao partido cujo lema – fascista até ao tutano – é “limpar Portugal” permitiram ao menos este pequeno ganho colateral: por estes dias, é muito fácil ver onde está a imundície.

E também onde se encontra verticalidade de carácter: que Luís Montenegro não esmoreça nunca, apesar de todas as pressões, em manter o seu “não é não”.


11 março 2024

involução


Começámos por pensar no 25 de Abril como revolução.
Depois, houve quem afirmasse que era apenas evolução.
Agora, 50 anos depois: involução.

Sobre a distribuição de votos entre os partidos democráticos: como é óbvio, cada eleitor tem o direito de dizer se prefere ter mais ou menos Estado social, mais ou menos impostos para os pobres ou para os ricos, mais ou menos SNS e Segurança Social, mais ou menos privatizações, mais ou menos preocupações de cidadania na escola. A Democracia é mesmo isso.

Quanto aos que meteram 48 arruaceiros incompetentes e cínicos no Parlamento: que carácter e que valores tem essa gente que usa o seu direito de voto para destruir a Democracia e o país?


ontem

 

Ontem houve um momento comovedor na assembleia de voto do Consulado de Berlim: uma jovem portuguesa descobriu que não podia exercer ali o seu direito de voto, e começou a chorar desconsoladamente.

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Para os emigrantes portugueses, o sistema eleitoral é muito complicado. Numas eleições o voto é apenas presencial, noutras é por sistema postal excepto se as pessoas se inscreverem (atempadamente!) para voto presencial. Depois há pessoas que mudam de casa, se esquecem de informar o Consulado sobre isso, e a carta com o boletim de voto é enviada para a morada anterior. E há as que dão a nova morada para efeitos de renovação do passaporte, mas esta informação não passa automaticamente para o sistema de recenseamento eleitoral.

A informação está toda no site da CNE, mas as pessoas provavelmente confiam que "vai ficar tudo bem", e no final têm decepções enormes. 

E como se isto não fosse já muito complexo, ainda temos os correios alemães, que agora são uma sociedade anónima, e desde 2015 maioritariamente na mão de privados. O Estado português bem se esforça a enviar todas aquelas cartas com registo e aviso de recepção, mas estas, mal entram em território alemão, parece que lhes dá uma maluqueira qualquer. E como as pessoas não se dão conta de que a sua carta se extraviou ou voltou para trás, não contactam atempadamente a CNE para pedir novo envio. 

(Também houve uma pessoa que recebeu a carta em casa, mas pensou "ah, prefiro ir votar ao Consulado" - perdeu a viagem e perdeu o voto, porque a carta tinha de ter carimbo do dia anterior. E houve outra que, ao ser informada de que não podia votar porque não se tinha inscrito para o fazer, desatou a insultar a mesa e a ameaçar: "Vocês não sabem com quem se meteram!")  


09 março 2024

votar

Hoje estive no Consulado de Portugal em Berlim das oito da manhã às sete de tarde. Eu, e mais cinco pessoas:

Amanhã, lá estaremos outra vez das oito da manhã até à hora em que aparecer o último de todos os que se inscreveram para o voto presencial.

É só um exemplo do outro lado da medalha: para que os portugueses possam exercer o seu direito de voto, o Estado português gasta muitos milhões de euros em organização, papel, franquias para o voto postal, etc.
E há milhares de pessoas a oferecer generosamente o seu tempo livre para assegurar o funcionamento das mesas de voto.

Ia apelar ao voto - ao voto em partidos que não atirem o nosso país para uma deriva de ódio e autoritarismo - e de repente uma recordação feliz veio ao meu encontro: as primeiras eleições em Portugal depois do 25 de Abril.

A alegria, o entusiasmo das pessoas. A consciência da importância e da dignidade daquele acto.


06 março 2024

Berlinale 2024 - dia 2






O segundo dia do festival foi uma festa para mim: só filmes bons. Além disso, começou bonito. Um belo dia de inverno. Ao fim da tarde, a Filarmonia iluminada guiou-me o caminho enquanto atravessava o escuríssimo Tiergarten a pé, entre o terceiro e o quarto filme do dia.



4. Keyke mahboobe man - My Favourite Cake, de Maryam Moghaddam & Behtash Sanaeeha

Um filme lindo, comovente e divertido sobre uma viúva iraniana de 70 anos que decide dar-se uma nova oportunidade e ser feliz numa relação. Os seus autores, que também já trouxeram à Berlinale o "Ballad of a white cow" não estavam presentes porque o regime iraniano os impediu de sair do país.


5. Crossing, de Levan Akin

(não encontrei nenhum trailer com legendas em inglês)


O filme começa com esta informação: tanto na língua georgiana como na turca, não há género gramatical. Mesmo nos pronomes, o género é neutro. Eu a pensar: "Esta tem graça. Um país é cristão, o outro muçulmano. Aparentemente, não precisam da gramática para se entenderem quanto ao masculino e ao feminino."

Uma mulher vai da Geórgia a Istambul em busca da sobrinha transsexual. E nós vamos com ela, e fazemos com ela o percurso que leva do preconceito ao acolhimento da realidade do outro.

Um filme imprescindível.



6. Sieger Sein - Winners, de Soleen Yusef



Numa escola de Wedding, um bairro berlinense onde vivem muitas famílias de trabalhadores com baixo nível salarial e/ou imigrantes, um professor muito interessado tenta ajudar à integração de uma aluna nova, de uma família curda que fugiu à guerra da Síria, convidando-a a entrar para o clube de futebol feminino.

A realizadora, Soleen Yusef, ela própria chegada à Alemanha em criança, fugindo à guerra do Iraque, decidiu homenagear com este filme a sua família, as crianças refugiadas e os professores que a ajudaram a integrar-se na sociedade alemã e a encontrar o seu caminho.

Por trás da linguagem moderna das imagens, da personagem principal que atravessa a quarta parede para se dirigir ao público, do ritmo excelente, do humor e até do sinal da luta de classes (Wedding contra Charlottenburg, hehehe), o filme oferece um retrato empático daqueles adolescentes, com todos os seus pesos e as dificuldades pessoais que trazem para o seio da comunidade escolar.

Um filme para toda a família que vale muito a pena ver.



7. A different man, de Aaron Schimberg

Um trabalho inteligente, cheio de reviravoltas, sobre o ser, o parecer e a consciência de si próprio.

Sebastian Stan recebeu o Urso de Ouro para melhor actuação. Mas eu não conseguia tirar os olhos do Adam Pearson.









05 março 2024

Berlinale 2024 - dia 1


1. Yoake no subete - All the long nights, de Shô Miyake

Gostava muito de ter visto este filme, mas descobri demasiado tarde que há um raixparta de um túnel de S-Bahn que está em obras. Tive de mudar o percurso, perdi um tempo precioso, cheguei demasiado tarde. Aprendi para a vida - nunca mais perdi nenhum filme da Berlinale por causa desse maldito túnel em obras.


2. Săptămâna Mare - Holy Week, de Andrei Cohn

Roménia, finais do século XIX. Uma família judia vive à margem da aldeia, numa pequena propriedade onde tem um restaurante para quem passa. Às vezes, o marido conversa com a mulher sobre um rumor que ouviu, sobre a possibilidade de se mudarem para uma terra longínqua, nem se sabe bem onde, algures perto da Síria, onde poderiam viver em paz. Ela não acredita nisso. A partir do momento em que o pai da família começa a temer vir a ser vítima de um acto de grande violência, e a polícia da terra ignora os seus pedidos, desata a tomar decisões erradas.

Um filme escorreito, de ritmo um pouco lento, que não é necessariamente um daqueles filmes imperdíveis. Mas há algo importante que me ficou dele: lembrar (nunca esquecer!) a vulnerabilidade e a impotência perante uma hostilidade generalizada, que eram elementos determinantes na vida qutodiana dos judeus europeus. E perceber o poder apelativo do sonho de ir viver numa terra livres de humilhações e violências.


3. Small Things Like These, de Tim Mielants

Uma pequena cidade na Irlanda consegue assobiar pacatamente para o lado perante as atrocidades praticadas num lar de freiras que acolhe mulheres jovens "perdidas" - uma das "Magdalene Laundries" irlandesas onde tantas mulheres sofreram horrores. Todos, menos um pai de família, que vê e se debate com a decisão entre arriscar o futuro das suas próprias filhas e tomar uma posição de frontalidade e de respeito pela sua própria consciência.

Emily Watson extraordinária no papel de directora do lar. Cillian Murphy às vezes um bocado cansativo naquelas cenas de penumbra em contraluz onde o seu conflito interior se manifesta num perfil de boca entreaberta, a respirar com custo. Às escuras, até eu sou boa actriz...


04 março 2024

Berlinale 2024 - em defesa da liberdade de expressão


No post anterior falei sobre o aceso debate suscitado pelas críticas à guerra de Gaza que foram feitas na cerimónia de encerramento da Berlinale. Há políticos responsáveis na área da Cultura a anunciar o fim de apoios financeiros a "artistas anti-semitas", há instituições a anunciar que vão rever os apoios de financiamento à Berlinale. Neste contexto de "crime e castigo" (sendo que o crime é uma acusação de "anti-semitismo" segundo critérios que poucos entendem), esta declaração de Carlo Chatrian e Mark Peranson aparece como uma lufada de ar fresco:



March 1, 2024

We have a great deal of respect for the institution we are working for and for the country that has hosted us for the last five years. The way Germany has handled its past and overcome it, becoming a leading country in supporting human rights and welcoming people in distress has been admirable, and that is one of the reasons why we have been so proud to work for the Berlinale. Knowing that our backgrounds don’t allow us to fully comprehend the complexity of people’s feelings and beliefs, we have always aligned with the festival’s decisions even when these were not exactly ours and at times did not go in the direction of what an international film festival should stand for.

The last days have made us aware of the great danger that the Berlinale, like other institutions in Germany, is facing. That’s why we dare to raise our voices. We stand for cinema, which doesn’t belong to any political party- it is neither right wing nor left wing. We believe in the power of cinema to unite people. This year’s festival was a place for dialogue and exchange for ten days; yet once the films stopped rolling, another form of communication has been taken over by politicians and the media, one which weaponizes and instrumentalizes anti-Semitism for political means. No matter our individual political convictions or beliefs, we should all keep in mind that freedom of speech is an essential part of what defines a democracy. The award ceremony on Saturday, February 24 has been targeted in such a violent way that some people now see their lives threatened. This is unacceptable.

We stand in solidarity with all filmmakers, jury members, and other festival guests who have received direct or indirect threats, and do not back down from any programming choices made at this ear’s Berlinale. We also take this opportunity to state that we deeply feel for the hostages still being held by Hamas, including former Berlinale guest David Cunio, and we call for an immediate release of all other hostages. We also feel for the lives of millions of people in Gaza; their lives are in danger. To the ones who say that it is either or, we want to remind you that sorrow is universal. Mourning the loss of human beings on one side doesn’t mean that we don’t mourn others’ losses too. Stating the opposite is simply dishonest, and shameful and polarizing behavior.

As festivalgoers and programmers, we truly hope that the Berlinale will stay a “window of the free world”. A place where any film can be shown. A place where any international guest can come without having their political views scrutinized. As Meron Mendel, director of the Bildungsstätte Anne Frank said when asked for comments regarding the award ceremony, “It would be wrong to describe all those who criticize Israel one-sidedly and sometimes with radical positions as antisemites…

Whether we like it or not, we have to learn to endure such debates!

Carlo Chatrian, artistic director

Mark Peranson, head of programming

02 março 2024

Berlinale 2024 - entre a política e o cinema, com a guerra de Gaza no centro do palco



A Berlinale começou a 15 de Fevereiro, e acabou no domingo passado - depois de 90 km, 180 andares e três dúzias bem aviadas de filmes, no que me diz respeito. Desde que verifico no telemóvel os passos que dou e as escadas que subo, dou-me conta de que a Berlinale é meia preparação para uma maratona. 

Em 2024, o festival mostrou-se ainda mais político que o habitual. Na cerimónia de abertura começaram por aludir ao facto de terem desconvidado dois deputados da AfD, depois de se ter tornado pública a ligação deste partido a um movimento que pretende expulsar do país estrangeiros e até os seus filhos com nacionalidade alemã ("as tradições são importantes, mas às vezes é preciso serem revistas, e foi o que fizemos"). Condenaram a invasão da Ucrânia, o massacre do Hamas e o horror que neste momento se abate sobre a população civil de Gaza. No seu discurso, a ministra federal da Cultura referiu-se à guerra de Gaza num tom que já foi bem diferente do registo dos representantes políticos alemães em Outubro e Novembro. Por parte da Alemanha, o apoio a Israel mantém-se - mas não impede esta ministra do governo alemão de acusar a tragédia humanitária, e de afirmar que é imperativo caminhar urgentemente para uma solução de coexistência pacífica entre ambos os povos. 

Perante o ambiente muito tenso desta Alemanha polarizada entre o apoio incondicional a Israel e as duras críticas à catástrofe humanitária em Gaza, os directores da Berlinale falaram do festival como um espaço de diálogo, de troca de ideias e de escuta do outro, e apresentaram o projecto "tiny house", que é sobretudo simbólico: um pequeno pavilhão na Potsdamer Platz onde, no início do festival, durante três dias um judeu e um palestiniano se ofereciam como interlocutores para quem quisesse trocar ideias e verbalizar angústias.

O festival de cinema correu bem, como é habitual. Nota-se nos detalhes que já não tem os patrocinadores poderosos de outros tempos, mas os bilhetes para a maioria dos filmes continuaram a esgotar poucos minutos depois da abertura das bilheteiras online, e muitas praças de Berlim encheram-se com o bulício típico da Berlinale.

Na cerimónia de encerramento é que tudo se complicou: os prémios principais foram atribuídos segundo critérios mais políticos que artísticos - urso de ouro para um documentário sobre a restituição de peças de património cultural ao Benim, prémio do melhor documentário para "No Other Land", sobre a ocupação violenta de aldeias palestinianas e o roubo de terras na Cisjordânia. Os discursos foram - segundo as críticas que logo agitaram a sociedade - demasiado unilaterais. Falou-se em genocídio e apartheid, exigiu-se um cessar-fogo imediato, mas a ninguém ocorreu lembrar o massacre do Hamas, e o que revelou ao mundo inteiro sobre a insegurança de quem vive em Israel. Mais significativo ainda: quando duas pessoas da assistência se ergueram e gritaram "Paz para Israel e os palestinianos!", foram vaiadas. E os políticos presentes na sala - entre outros, o presidente de Berlim e a ministra federal da Cultura - não tiveram a presença de espírito de reagir de forma adequada. Como também não houve reacção por parte dos moderadores no palco, nem dos directores da Berlinale.

No noticiário do primeiro canal de televisão, o responsável pelo pelouro da cultura do Estado de Berlim acusou o anti-semitismo que grassa nesta sociedade e em particular no mundo da cultura, e que tem de ser encarado de frente, nomeadamente recusando financiar com fundos públicos projectos artísticos de pessoas que são anti-semitas ou têm um comportamento discriminatório. Como é, infelizmente, habitual nestes casos, o seu discurso não foi claro na distinção entre anti-semitismo e crítica aos actos cometidos pelo Estado de Israel.

A comentadora Monika Wagner foi mais clara e pedagógica: "O que aconteceu na Berlinale provocou um escândalo que não foi útil para ninguém e prejudicou muitos, desde logo os artistas que querem que o seu trabalho seja levado a sério. Sim, pode-se exigir um cessar-fogo, sim, pode-se criticar a política de colonatos de Israel, sim, com certeza que se pode criticar o modo como Israel aceita que em Gaza sejam mortas pessoas inocentes em massa. A nada disto se pode chamar "discurso anti-semita". O que levanta questões é o modo como alguns criticaram as operações militares de Israel em Gaza sem mencionarem o sofrimento das pessoas no dia 7 de Outubro. Porque estamos a falar de pessoas que foram torturadas e mortas com toda a bestialidade, pessoas que foram desumanizadas. Falamos de uma organização terrorista que quer implantar um Estado islâmico, quer varrer Israel do mapa e tem ainda em seu poder muitos reféns inocentes. Nos seus discursos, os artistas premiados não disseram uma única palavra sobre isto. Não será possível pôr fim a este conflito assustador se não se encarar e nomear o sofrimento de ambos os lados. Só uma verdadeira compaixão em relação a todas as vítimas pode ajudar a resolver este conflito e a restaurar a humanidade. O que não ajuda nada são afirmações unilaterais cheias de veemência. Pode-se ou deve-se proibir manifestações deste género no futuro? Como é óbvio: não. Deviam os moderadores ou a direcção do festival ter reagido de outra forma? Isso teria, ao menos, reduzido a dimensão dos danos. Porque os danos são imensos no caso de um festival internacional como este. A polarização unilateral raramente ajudou a resolver um conflito; na maior parte dos casos, tornaram-no ainda mais grave e mais duradouro."  

Perante a catástrofe de Gaza, o mundo dá consigo cada vez mais entrincheirado em retóricas de abominação do outro. Se queremos o fim deste conflito de tantas décadas, temos de saber pôr fim à espiral do ódio. Antes de mais, temos de ser capazes de transformar o nosso discurso num húmus para a paz: a matéria orgânica que transforma a podridão e o horror da morte em promessa de vida. Queremos que Israel e os grupos jihadistas parem de atacar as populações civis de um lado e do outro do muro, queremos a libertação imediata tanto dos reféns do Hamas como dos palestinianos que estão em prisões israelitas sem julgamento. E queremos que os governos dos nossos países se unam a uma comunidade internacional cada vez mais coesa, e muito determinada em estabelecer uma ordem nova que garanta para todos - judeus e árabes - a coexistência pacífica e uma vida com dignidade naquela terra.

 

29 fevereiro 2024

padaria

Fui à padaria à hora a que estava para fechar, e já não havia quase nada. A senhora à minha frente fez o pedido, e logo a seguir voltou-se para mim e perguntou "não queria isto, pois não?". Eu disse que não, e quando chegou a minha vez pedi tudo o que queria, mas antes perguntava sempre à pessoa atrás de mim se estava interessada. E até rimos um bocado, porque ela queria o outro pão parecido com o meu, mas com passas, e temia que eu o comprasse.

E de repente, ali pelas 17:50 da tarde, uma padaria berlinense tornou-se um local cheio de seres humanos, e foi bonito.

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Há 20 anos vi um filme onde se informava que o pão que se deitava fora todos os dias em Viena era suficiente para alimentar toda a cidade de Linz. Consequência dos hábitos dos consumidores que vão comprar 5 minutos antes do fecho da loja, e ainda querem ter todas as variedades de pão e de produtos frescos ao seu dispor.

Esta mentalidade está a mudar - e parece-me excelente.

26 fevereiro 2024

já Helena não sou

Durante a Berlinale, fiz gazeta à Enciclopédia Ilustrada. Nem podia ser de outra maneira: à hora a que devia publicar a palavra para os posts desse dia, já estava a ver o primeiro filme da minha lista.

Mas hoje voltei. Primeiro avisei que ia passear o cão, e talvez me atrasasse, algo a que os amigos daquele grupo já estão mais do que habituados.

Aliás: consta que gostam que me atrase, só por causa das desculpas que arranjo para explicar o atraso. Mas hoje - milgare? - não me atrasei. Pelo que tive de publicar  uma espécie de desculpas por ter fugido ao habitual:

Amigos, isto agora é oficial:
Pois já Helena não sou.
O Fox - será da idade? -
Nem fugiu, nem me atrasou.
Dei meia volta à cidade
Pus a roupa no varal
E nem assim, meus amigos,
Consegui um atrasinho
Nem sequer o mais banal.
Será este o bom caminho?
Será este o meu final?

14 fevereiro 2024

a propósito de dilemas


Há dias falei do dilema sobre escolher entre salvar um cão e salvar o Hitler, se só se pudesse salvar um deles de uma casa em chamas. Pessoalmente, resolvia este problema de princípios civilizacionais de forma simplória: salvava o que pesasse menos, porque as minhas forças são limitadas...

Dilema puxa dilema, parei num outro, esse realmente difícil: se uma tragédia mortal estivesse prestes a acontecer, digamos, dois carros avançam para um precipício, num vão oito pessoas e no outro vai um filho meu; tenho forma de evitar que um dos carros caia - que carro escolho? [ Que carro escolhiam vocês, se fosse um filho vosso? ]

Se fosse eu quem ia no carro, não teria a menor hesitação: salvem os outros. Porque não sei como conseguiria viver a minha vida, se soubesse que alguém tinha escolhido deixar morrer oito seres humanos para me salvar a mim.

Parece fácil, mas logo tropeço nas dificuldades da vida real: os dois reféns do Hamas que o exército israelita libertou em Gaza. O noticiário alemão (aqui, a partir de 14:09) mostrou imagens do resultado da "manobra de diversão" (terrível nome!): "Mas a felicidade de uns é a violência e a morte de outros", disseram. "Para desviar a atenção da manobra de libertação, o exército atacou outros alvos em Rafah, há inúmeros mortos e feridos". Entrevistam uma menina de nove anos, Mai al-Najjar, que tem o corpo cheio de feridas. O pai foi morto. "Estava numa tenda com a minha família quando começaram a atacar-nos. O meu pai foi lá fora, para ver o que se estava a passar. Disse que havia explosões, e ainda estava a falar quando ouvimos mais uma. Fugimos todos a correr." Os reféns libertados: como será viver o resto da vida sabendo que, para me salvar a mim, mesmo sendo eu vítima de uma injustiça tremenda, assassinaram dezenas de pessoas igualmente inocentes e igualmente vítimas de tremendas injustiças? As famílias dos restantes reféns do Hamas: como exigir "bring them back" ao seu governo, sabendo que o preço dos resgates é a vida de muitos inocentes? E será que exigir a Netanyahu que negoceie a libertação imediata em vez de operações como esta é uma hipótese plausível? A pessoa que informou o exército israelita sobre a localização dos reféns: como vai conseguir dormir, de hoje em diante? E Netanyahu: a sua popularidade está em alta porque conseguiu salvar dois reféns. Este massacre de civis não passou de uma operação de propaganda. Apesar dos ataques de uma violência para lá de obscena contra civis, e apesar de terem morrido nesta operação dois soldados israelitas, a popularidade de Netanyahu está em alta. Grande parte da população israelita: adere a este desvario, completamente alienada pelo trauma da orgia de violência do 7 de Outubro, pela tragédia dos reféns e pelo ambiente irracional de um país em guerra.

E o Hamas: a operação de resgate - com todo o horror que se viu - não teria acontecido se já tivessem libertado todos os reféns. Ou se já estivessem a negociar com seriedade a troca de cada um destes reféns pelos palestinianos indefinidamente retidos sem julgamento em prisões israelitas. Ou se já se tivessem rendido. O Hamas: que atirou os palestinianos para este vórtice de violência sem lhes perguntar se estavam disponíveis para morrer numa mais que previsível "guerra total". Que continua teimosamente a oferecer resistência a um inimigo muito mais forte, absolutamente impiedoso e que tem mostrado que não recua perante nada. Há meses que penso na história bíblica das duas mães que deram à luz na mesma altura. Durante a noite, o filho de uma delas morreu, e ela trocou os bebés. De manhã, a mãe da criança roubada deu pela troca. O caso acabou por ir ao rei Salomão, que decidiu partir a criança viva em duas, para dar meio filho a cada mãe. A mentirosa disse "pois então que seja", e a mãe verdadeira implorou que entregassem a criança inteira à outra mulher. Pôs a defesa da vida do filho que amava acima das suas razões e da sua sede de justiça. Penso nesta história especialmente desde o dia em que vi um cartoon da campanha "e tu? também condenas o Hamas?", um meme ardiloso que servia para ridicularizar quem acusava o Hamas. Naquele cartoon, mostrava-se um soldado israelita a fazer essa pergunta a um prematuro num hospital de Gaza. Que não haja dúvidas: não há desculpas nem perdão para quem corta os fornecimentos de água e electricidade a uma população encerrada dentro de muros. Sim, todos ficámos horrorizados perante as imagens da sala de bebés prematuros, onde as máquinas estavam prestes a deixar de funcionar porque não havia combustível para os geradores. Provavelmente todos sentimos a mesma impotência e uma enorme repulsa pelo governo de Netanyahu, o responsável por esta situação. Mas aquela pergunta feita a um bebé que está em risco de morrer num braço de força ignóbil - "e tu? condenas o Hamas?" - levanta uma questão pertinente: "e tu, Hamas? que fazes para salvar este bebé?" Israel cortou o fornecimento de energia, mas nos depósitos do Hamas havia reservas de combustível suficientes para alimentar o gerador que podia salvar aqueles prematuros. Diga alguém, se o souber: o Hamas disponibilizou algum do seu combustível para permitir que os hospitais continuassem a funcionar? Ou preferiu guardá-lo para continuar a lançar rockets simbólicos contra o iron dome de Israel? Este bebé prematuro desenhado no cartoon, tal como o bebé disputado no tribunal de Salomão, corria risco de vida. De um lado, tem um soldado do exército de Israel. Mas do outro lado não tem um Hamas no papel da mãe que ama o seu filho acima de tudo. O Hamas deseja a todo o custo ganhar a disputa, mas não tem amor à criança. "Vai morrer? Pois então que seja", diz o Hamas. "Até dá jeito, para a propaganda. Dá sempre imagens impecáveis para o tiktok."


a origem do apocalipse

 

"Será que o Wladimir Kaminer está a escrever sobre a guerra da Ucrânia?", perguntou-me o Carlos Vaz Marques em Março de 2022, se não me engano. "Quem me dera publicar um livro dele sobre esse tema!" "Sabes aquele português que publicou o Viagem a Tralalá?", perguntei eu umas semanas mais tarde ao Kaminer. "Disse que faz questão de publicar um livro teu sobre a guerra da Ucrânia." O Wladimir Kaminer limitou-se a fazer aquele seu sorriso de quem sabe muito mais do que revela. Passados uns meses: "Podes dizer ao teu amigo português que o livro dele está pronto." E foi assim que eu comecei a traduzir um livro meses antes de ele ser posto à venda na Alemanha (o que foi uma chatice, porque o ficheiro pdf era tão secreto tão secreto tão secreto que nem o consegui converter para word, que é como gosto de trabalhar). É esta a minha história sobre a origem deste livro. Provavelmente não é a história tooooda, mas - deslarguem-me! - quem a conta sou eu, conto-a como muito bem me apetece.
😉
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"Pequeno-almoço à beira do apocalipse" não é só sobre a guerra da Ucrânia (e os ucranianos que vieram parar a Berlim e a Brandenburgo, e a repentina urgência dos homens nos confins da Rússia de ir apanhar amoras nas montanhas, e ficarem por lá, etc.). É - como todos os livros do Kaminer - um conjunto de crónicas sobre o que acontece. Neste caso: escreve sobre o nosso tempo, cheio de espadas de Dâmocles, num registo que consegue ser (quase sempre) divertido, apesar da seriedade dos temas. Porque, como dizia ele há muitos anos, numa entrevista: " A nossa vida é uma tragédia, estamos permanentemente a ser confrontados com desafios maiores que nós. Mas só conseguimos avançar se identificarmos o lado divertido desta tragédia." Se quiserem ler o livro antes de chegar às livrarias, é aqui: www.zigurate.pt/apocalipse
E se são daquelas pessoas que gostam de ler as primeiras frases do livro antes de o comprar ("felizes os que acreditam sem ler"... ), pronto, lá terá de ser...

13 fevereiro 2024

"pequeno-almoço à beira do apocalipse"

 


Atenção! Pára tudo!
O acontecimento editorial do século!
Que digo eu? Do milénio! Pelo menos. Agora, muito a sério: há muito tempo que não tinha tanto gosto em traduzir um livro. Para quem traduz, cada frase do Wladimir Kaminer é um desafio e um prazer. E confesso que é impressionante, é realmente impressionante...
...como um livro tão pequeno demorou tanto tempo a traduzir. (hihihi) (não sei que me deu hoje, que estou muito engraçadinha) O que eu queria mesmo dizer era: a maneira como Wladimir Kaminer aborda algumas das maiores crises do nosso tempo é impressionante. Quantas vezes não parei, abananada, a pensar "opá opá opá, como é que ele consegue fazer, em tão poucas frases, um desenho tão divertido e simultaneamente tão certeiro?"
--- Vem isto a propósito do anúncio do Carlos Vaz Marques na sua página de facebook:
UM NOVO ZIGURATE JÁ EM PRÉ-VENDA
(NAS LIVRARIAS A PARTIR DE 22 DE FEVEREIRO)
Um best seller alemão para sobreviver com humor a tempos inquietantes. Kaminer, um reconhecido mestre da ironia e do sarcasmo, é capaz de transformar numa gargalhada as mais angustiadas inquietações que estamos a atravessar.
[Tradução de Helena Araújo.]

11 fevereiro 2024

mouvement perpetuel

 - Mãe, já estamos a caminho da vossa casa. - Ai! Ainda não comecei a fazer o almoço! - Então vou votar primeiro, e depois vou para aí. - OK. Mas deixam entrar o Fox? - Deixam. Já votei... [pausa breve, gargalhada] ...já votámos muitas vezes juntos.


Hoje, em certos bairros de Berlim, repetem as eleições de 2021.

(E não, a culpa não é do Costa, nem dos woke, nem dos queer, nem do politicamente correcto, nem nada.)

10 fevereiro 2024

humanamente impossível

 

Esta manhã, naquela fase do acordar em que ainda não se está deste lado, mas já não se está inteiramente do lado de lá, passou-me pela cabeça o velho dilema:

- Se uma casa estivesse a arder, e lá dentro estivesse um cão e o Hitler, e você só pudesse salvar um deles, qual deles salvava?

A resposta veio rápida e segura:

- O Hitler é muito pesado!

09 fevereiro 2024

a cozinheira assim-assado ataca de novo, mas desta vez acerta

 


Há dias meti os pés pelas mãos com aquela trapalhada do puré de batata, mas agora, senhores e senhores: voici une specialité de cuisine traditionnelle savoyarde, la fameuse tartiflette !

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era uma vez na Alemanha

(Nota prévia: se não houver informação contrária, todos os links são para notícias em alemão) 


No sábado passado, no centro de Berlim, um estudante judeu foi atacado por outro estudante da sua universidade, que o reconheceu num bar, o seguiu na rua, e o agrediu violentamente - mesmo quando já estava caído no chão. A vítima teve de ser operada para evitar uma hemorragia cerebral, e está no hospital com fracturas em vários ossos do rosto. Chama-se Lahav Shapira. Depois do ataque, no twitter e no instagram multiplicaram-se publicações do género: "lol - é um provocador hardcore" e até "um famoso racista judeu (...) com alma satânica".

O avô materno do "provocador hardcore" emigrou para Israel em 1948. Sozinho. No gueto de Varsóvia, escapou à "solução final" friamente planeada porque, no dia em que os nomes de toda a família apareceram na lista do transporte para o gás em Treblinka, ele conseguiu esconder-se.

O avô paterno de Lahav, Amitzur Shapiraera treinador dos atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique, e foi uma das vítimas do massacre de terroristas palestinianos.

Em 2002, depois do divórcio, a mãe decidiu deixar a Cisjordânia, onde viviam, e mudar-se para a Alemanha com os dois filhos, para viver com o seu novo companheiro numa pequena cidade de Sachsen-Anhalt. Shahak, o filho mais velho, tinha então 14 anos. Não se importou de deixar a Cisjordânia, onde nunca se sentira bem e não tinha amigos. Na Alemanha, contudo, o ambiente era ainda pior, porque a região para onde foram viver é um bastião da extrema-direita mais radical. Uma das primeiras palavras alemãs que aprendeu foi "Judensau". Na escola, troçavam dele por ser estrangeiro e judeu.

Um dia, teria Lahav 16 anos, foi insultado ("porco judeu") e espancado por um adolescente com ideias da direita radical. O ataque só não foi além de algumas contusões e feridas superficiais porque um condutor que ia a passar parou, gritou ao atacante e levou dali a vítima no seu carro.

Descobriu-se depois que o agressor jogava no clube de futebol local, onde havia um treinador de futebol neonazi. Mas demorou algum tempo até se conseguir convencer a direcção do clube que não podiam deixar aquele tipo com bigodinho à Hitler treinar adolescentes.

O irmão mais velho, Shahak, foi viver para Berlim, onde finalmente encontrou o ambiente de liberdade que sempre almejara. Mas até em Berlim fez más experiências. No clube de futebol onde se inscreveu, alguns jogadores árabes chamaram-lhe "porco infiel". Mudou para outro clube. E depois, na passagem de ano para 2015, na carruagem de metro onde ia estavam sete jovens berlinenses de origem turca ou árabe a cantar "fuck Jude" e "fuck Israel". A carruagem estava cheia, mas só duas pessoas protestaram. Shahak foi ter com eles, disse "eu sou judeu - têm algum problema com isso?" Filmou-os. Cuspiram-lhe em cima. Quando saiu do comboio, os outros seguiram-no, exigiram-lhe que apagasse o filme e, tendo ele recusado, espancaram-no até que agentes de segurança da estação intervieram. Quando o caso se tornou público, Shahak quis a todo o custo impedir a sua instrumentalização para propaganda islamofóbica. "Porque aprendi muito cedo o que é o racismo, e sempre o achei uma estupidez", disse ele. A sua mensagem: é preciso pôr fim à espiral de ódio. O anti-semitismo não deve ser instrumentalizado para justificar discurso de ódio contra muçulmanos. "E claro que também teria dito alguma coisa se alguém estivesse a gritar 'fuck Palestina'."

Entre outras iniciativas de protesto, Shahak Shapira é o autor da série de fotomontagens Yolocaust (para quem não conhece: aqui, em português e aqui um exemplo) e de uma acção de crítica ao Twitter, quando, depois de denunciar mais de 300 tuítes de ódio e receber apenas 9 respostas, todas elas alegando que os tuítes não violavam as regras, decidiu pintar alguns deles em frente à sede da empresa em Hamburgo. Frases como: "Jewish scum", "n*rs are a plague to our society", "retweet if you hate muslims", "a Alemanha precisa novamente de uma Solução Final para o Islão".

Devido à sua participação em iniciativas contra a extrema-direita, a própria mãe de Shahak precisou de ficar sob protecção policial durante duas semanas.

É esta a história da família de Lahav Shapira, que está neste momento no hospital com vários ossos da cara partidos.

Depois do massacre do Hamas, os judeus começaram imediatamente a sentir-se ainda mais inseguros nas ruas europeias. Berlim não foi a excepção - bem pelo contrário. Afinal de contas, esta é a cidade onde, no dia 7 de Outubro, algumas dezenas de pessoas vieram para a rua festejar aquela orgia de violência contra judeus.

Na realidade, há vários anos que os actos de violência anti-semita, por parte de neo-nazis e de alguns muçulmanos, já são um tema que choca e preocupa a Alemanha. E essa violência aumentou imediatamente a seguir ao massacre, ainda antes de Israel começar a bombardear Gaza.

À semelhança do que aconteceu em toda a cidade, e particularmente nos bairros onde há mais árabes e turcos, também os alunos judeus da Freie Universität (Universidade Livre), onde Lahav estuda, começaram a deixar o quipá e o fio com a estrela de David em casa. Sentem medo. Ao longo destes meses, a direcção da Universidade não tem sabido responder de forma adequada a esta situação.

Em meados de Dezembro de 2023, estudantes dessa universidade, juntamente com grupos do exterior, organizaram ali uma acção de protesto contra os crimes que Israel está a cometer em Gaza. Ocuparam um anfiteatro, afixaram cartazes, disseram o que tinham a dizer, houve até quem pusesse em causa o direito de Israel a existir. Alguns estudantes judeus daquela universidade tentaram entrar na sala, mas o acesso estava vedado a quem tivesse uma posição crítica ou pró-Israel. Lahav conseguiu entrar juntamente com outros estudantes. Num ambiente de enorme tensão, prendeu à parede um cartaz com a fotografia de um dos reféns do Hamas. Houve cartazes (dos dois lados) arrancados e alguns empurrões. A cena foi filmada (aqui).

No filme, vê-se um homem que faz menção de arrancar o cartaz de Lahav e o tenta empurrar para fora do local. É Ramsis Kilani. Imediatamente a seguir ao massacre de 7 de Outubro, Ramsis Kilani publicou uma série de tuítes chocantes, como por exemplo: questionava se os cidadãos israelitas deviam ser realmente considerados civis, já que, afinal de contas, mais tarde ou mais cedo todos cumpriam serviço militar.

Ramsis Kilani é um berlinense filho de uma alemã e de um palestiniano. Após o divórcio do casal, o pai regressa a Gaza, onde casa novamente. Na guerra de 2014, uma bomba israelita cai no prédio onde a família com cinco filhos se refugiara, em obediência às ordens do exército israelita. Em busca de um lugar mais seguro que a sua casa no norte de Gaza, tiveram o azar de se abrigar no prédio de escritórios onde também um comandante do Hamas se escondera. A bomba destinada a este mata onze pessoas da família de Ramsis Kilani: o pai, a sua mulher e todos os filhos, e mais 4 parentes que também se tinham refugiado ali. Uma vez que o pai e os cinco filhos tinham nacionalidade alemã, na Alemanha diversas organizações deram início a processos por crime de guerra. Israel conseguiu arranjar forma de não ser dado seguimento a nenhum deles. A organização de defesa dos direitos humanos que apoiava Ramsis Kilani avisou-o que não valia a pena recorrer, exemplificando com um precedente: até no caso do assassinato de quatro menores numa praia de Gaza Israel tinha conseguido escapar ao julgamento.

Como consequência do confronto na Freie Universität, imagens de Lahav Shapira começaram a circular na internet juntamente com o apelo: "Fixem este rosto". Lahav é marcado como provocador sionista e racista de extrema-direita.

(fonte: twitter)

Numa troca de mensagens com Lahav, Ramsis Kilani responde-lhe enviando simplesmente o emoji do triângulo vermelho. Na Alemanha, a ninguém escapa a berrante coincidência: o sinal do Hamas para assinalar alvos inimigos, que agora está a tornar-se um símbolo da resistência palestiniana (link para uma descrição em inglês), é igual ao sinal que os nazis usavam nos campos de concentração para marcar os prisioneiros políticos. A escolha deste símbolo é certamente um acaso, mas o seu uso na Alemanha ganha todo um outro significado.


(fonte: twitter)

A universidade titubeia. Começa por dizer que o mundo universitário é um lugar de confronto de ideias e que por vezes há naturalmente excessos, não toma medidas para evitar o aumento da tensão entre alunos judeus e grupos pró-palestinianos, quando se exige a expulsão do agressor diz que não pode expulsar um estudante por motivos políticos (na realidade, a lei não permite que uma universidade berlinense expulse aluno nenhum, seja qual for o motivo; no máximo, pode impedi-lo de entrar nas instalações durante alguns meses). Perante a evidência da violência física, fala em divergência ideológica. A nível da política do Estado de Berlim, também há algumas hesitações. Ao fim de alguns dias após este ataque, a pressão aumentou a tal ponto que se deu finalmente uma inflexão. A responsável deste pelouro no governo do Estado de Berlim e a direcção da universidade assumiram uma posição mais firme contra actos de violência anti-semita. Ontem, 8.1.2024: - Na Universidade Humboldt um grupo pró-palestiniano interrompeu uma sessão onde juristas de vários países, entre os quais uma juíza do Supremo Tribunal de Israel, queriam debater sobre os desafios do julgamento no contexto das Democracias constitucionais. Imagens aqui. (Sinceramente, é preciso ter uma pontaria de luxo para acertar tão ao lado: boicotar justamente uma juíza do Supremo Tribunal de Israel, o último reduto institucional daquele Estado capaz de cercear as tentações totalitárias do governo de Netanyahu!) - Em frente à Freie Universität - que ainda não decidiu o que vai fazer com o aluno agressor, e em quatro meses ainda não definiu um plano sobre como responder à situação de insegurança dos alunos judeus - houve nova manifestação pró-palestiniana. A universidade afirma que foi instaurado um processo-crime "devido ao conteúdo dos cartazes que apelavam a esta manifestação".

Uma associação de estudantes exige que a direcção da FU se demita. Acusa-a de passividade perante incidentes de fundo anti-semita, por demasiadas vezes e durante demasiado tempo. Referem a ocupação da sala e a violenta agressão de um aluno, distribuição de panfletos e ameaças a estudantes, além da apresentação de queixas por agressões menores. "Há uma falta de acção concreta, uma falta de consequências por parte da direcção da universidade", acusa essa associação.

O ambiente na universidade está cada vez mais tenso. Ontem, uma aluna confessava a um jornalista: "Até eu sinto medo, e nem sou judia."

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Tudo isto é trágico. Aquela cena de confronto físico numa universidade - o lugar de troca de ideias por excelência - entre um descendente de uma vítima do "terror palestiniano" e um descendente de uma vítima do "terror israelita": se não fosse a terrível realidade, dava uma potente metáfora. O desespero dos que sofrem pelos milhares de palestinianos a morrer em Gaza. O desespero de um judeu que cresceu na insegurança de um ambiente profundamente anti-semita e vê, na sua universidade, pessoas a desprezar os direitos dos reféns do Hamas e a negar ao seu país o direito de existir.

No meio de tudo isto, o que mais me espanta é o modo como alguns grupos pró-palestinianos conseguem fazer tudo de forma tão contraproducente. No preciso momento em que o mundo inteiro está profundamente escandalizado com o horror de Gaza, no preciso momento em que os alemães saem à rua aos milhões para protestarem contra os planos islamofóbicos da extrema-direita e aplaudem os oradores que afirmam que na Alemanha todos são bem-vindos, em vez de aproveitarem este contexto único para melhorarem a situação do povo palestiniano, alguns grupos pró-palestinianos escolheram formas de luta que provocaram uma extrema polarização.

Queimar bandeiras de Israel, gritar "from the river to the sea", recusar liminarmente falar dos reféns do Hamas ou criticar essa organização, ocupar instalações universitárias e recusar o debate, boicotar iniciativas universitárias: tudo isto faz com que largas camadas da população se recusem a participar em protestos pró-palestinianos, para não serem automaticamente associadas a simpatizantes do Hamas e inimigos do Estado de Israel.

Não dá para acreditar, mas conseguiram realmente afastar das suas manifestações muitas pessoas que concordam inteiramente com os motivos do protesto (que são: a deliberada destruição de Gaza e a morte de dezenas de milhares de pessoas), e, pior ainda: estão a conseguir reforçar na sociedade alemã a imagem preconceituosa que a extrema-direita espalha sobre os muçulmanos, como pessoas que não respeitam as leis e a cultura do país, e ameaçam valores básicos e a coesão desta sociedade.

Os palestinianos - em Gaza, e no mundo inteiro - mereciam melhores defensores.