31 maio 2008

catorze anos, ou: a vida da minha filha contada em bolos

Ontem a Christina fez catorze anos.
Anteontem há catorze anos fiz uma tarte de ananás, que acabámos por comer no hospital com a família e os amigos, no dia mais feliz da minha vida.
O parto fizera-se esperar mais de duas semanas. Dias difíceis para mim, em que as perguntas que se pretendiam simpáticas, "o quê, ainda com essa barriga? e então, o bebé, quando vem?", só contribuíam para aumentar o meu medo. Consolava-me pensando que antes de mim já duas ou três mulheres tinham passado pelo mesmo, e que tudo correria bem por força das estatísticas.
Nesse tempo de espera, uma enfermeira disse-me que nasceria na lua cheia, dado que normalmente há mais partos nessa altura.
A lua cheia chegou. Encontrei-me com ela num jardim claríssimo de luar, olhei-a como se fosse cúmplice do meu destino.
"Tu e eu", disse-lhe.

Anteontem há sete anos vivíamos em San Francisco e fiz um bolo de chocolate para a Christina levar para a escola. Um bolo caseiro, com ingredientes simples, batido à mão durante meia hora. Eu atalho, no máximo bato 10 minutos e é por muito favor, mas para um povo que compra os bolos super-artificiais e super-perfeitos em caixas de plástico no supermercado, já não foi nada mau. Comeram que não sobrou nem uma migalha.
Foi o bolo de aniversário mais estranho da minha vida: enquanto o batia, chorava desconsoladamente, porque de repente me dei conta que a Christina estava a crescer e nunca mais seria a minha filhinha.
(De onde se conclui, sem pensar muito, que se tivesse comprado o bolo num supermercado me teria poupado uma crise existencial. Acho que, sem pensar muito, começo a perceber melhor a sociedade americana...)

Tivemos de festejar este 14º aniversário antecipadamente, porque não conseguiram arranjar quórum de amigas para nenhum fim-de-semana até Julho. Aproveitámos a terça, em que a escola estava fechada devido a exames, e fomos passar dia e meio a uma cidadezinha de sonho: Buckow, a meio caminho entre Berlim e a Polónia.

Fiz-lhe uma tarte de grão-de-bico para levar para a escola. Uma novidade em Berlim, e as amigas adoraram.
A ver se no 10 de Junho me dão uma medalha por bons serviços prestados na divulgação da cultura portuguesa.

Ontem a Christina fazia catorze anos e perguntou-me se podia dormir em casa de uma amiga. O Joachim num congresso, o Matthias num torneio de xadrez... porque não?
À noite telefonou uma tia para lhe dar os parabéns, e ao dar-se conta que eu estava sozinha, perguntou-me se não estava zangada. Curioso, nem me tinha lembrado dessa possibilidade.

Não, não estava zangada. Porque havia de estar? Devia trocar os planos e o prazer de todos, forçá-los a festejar comigo?
Eles não estão a fugir de mim, estão a viver a sua vida.

A vantagem de viver entre duas culturas é que uma pessoa não tem hábitos nem tradições - tem de se reconstruir permanentemente e questionar sempre o sentido.
Tu e eu, minha lua cheia.

3 comentários:

Anónimo disse...

estou deliciado a ler as tuas descrições!

Da próxima vez que lá voltares experimenta este restaurante (http://ristorantetrepupazzi.weebly.com/).

Servem bem, é em conta e são muito simpáticos. A dona, Fátima Afonso, é portuguesa

Bj, João Fontes

Carla R. disse...

Este texto é perfeito, não me vou pôr a estas horas com meias palavras.
Que delícia.

Helena Araújo disse...

João,
parece-me que puseste o comentário no post errado - estavas a referir-te aos "Roma!", não é?

Carla,
obrigada - e mais não digo!