28 janeiro 2010

a lição da Conferência de Wannsee

Quando se comemoram 65 anos da libertação de Auschwitz, quero contar um pouco do que aprendi numa visita guiada para um grupo, no palacete da Conferência de Wannsee.
Tratava-se de guardas prisionais. O monitor ajustou o relato às características do grupo, focando especialmente a questão da responsabilidade individual e da consciência.

Numa das primeiras salas, com documentos sobre a fase em que os judeus eram assassinados a tiro, em frente às valas comuns, contou que os soldados que se recusavam a matar essas pessoas não chegavam a ser vítimas de alguma retaliação. Obviamente não diziam "eu isso não faço!", era mais "eu não consigo fazer isso". Seguiam-se pressões fortes por parte dos superiores e dos outros soldados. Se eles insistissem na sua incapacidade para atirar sobre civis, mulheres, crianças, velhos, nem eram presos, nem mandados para algum "comando suicida" na Frente Leste, nem nada. Punham-nos simplesmente a guardar os acessos ao local da chacina.

Na sala seguinte falou sobre a relativa independência do Exército, contando o exemplo do oficial Albert Battel, que se opôs abertamente à SS quando esta decidiu evacuar um gueto, chegando a momentos de tensão em que "armas alemãs se viraram contra armas alemãs". O caso subiu até Himmler, que ficou furioso, mas não pôde fazer nada. Limitou-se a anotar que no fim da guerra aquele oficial seria feito prisioneiro.

Um pouco mais tarde, na sala maior, com janelas enormes para o parque e o lago, os guardas prisionais sentaram-se em cadeiras ao longo das paredes, e o monitor começou a falar da conferência:
- Porquê um convite para uma reunião num lugar paradisíaco, seguida de uma refeição, em vez de uma convocação para uma reunião num ministério no centro de Berlim? Porque era preciso conquistar a boa vontade dos serviços envolvidos na "solução final". Não bastava dar ordens, porque o poder da máquina nazi não chegava a tanto. Era preciso convencer os outros elementos do aparelho estatal da necessidade do empreendimento, e fazê-los sentir-se parte natural da máquina e responsáveis pelo seu absoluto sucesso. O Ministério dos Negócios Estrangeiros, por exemplo, teria de estar firmemente disposto a não iniciar qualquer processo de autorização de saída para judeu algum - sem excepção.

E continuava:
- Várias folhas da acta da reunião tratam da questão dos mestiços de segundo e terceiro grau. Que fazer com aqueles que têm apenas um progenitor ou um avô/avó judeu? Começaram por sugerir que se fizesse depender a vida ou a morte do seu aspecto físico - se tivesse aspecto de judeu, era morto; caso contrário, era poupado. Mas isso levantava uma dificuldade: o que é aspecto de judeu? Como decidir algo tão subjectivo? Por exemplo, eu, polícia, olho aqui para este senhor (e apontou para o homem à sua frente) e não lhe vejo nada de especial. Mas o meu colega, que está a sair para tomar café, diz de passagem: "esse? está na cara que é judeu!"

Nesse momento aconteceu algo muito desagradável: alguns colegas do outro lado da sala fizeram um comentário do género "já tínhamos desconfiado" e desataram a rir, e o "judeu" lançou-lhes um olhar carregado de ódio. Um ódio completamente desproporcionado.

- Como esse método se mostrava demasiado difícil, continuou o monitor, sugeriu-se uma solução mais simples: esterilização forçada de todos os mestiços de segundo e terceiro grau. Nos campos de concentração começaram a fazer testes com produtos químicos cuja ingestão provocasse esterilidade.


[ Apetecia-me abrir aqui um espaço para três minutos de silêncio - o que é um pouco despropositado: porquê aqui, e não para os judeus de Przemysl que Albert Battle não conseguiu salvar? A verdade é que se fizéssemos três minutos de silêncio por cada sinal de desumanidade no sistema nazi, e por cada vítima, ficaríamos mudos para o resto da vida, e tínhamos de viver muitos anos. ]


- Aqui está a parte mais importante da acta, as frases que nos mostram porque é tão importante não esquecer nunca esta conferência:

No âmbito da Solução Final, e sob direcção adequada, os judeus devem ser usados no Leste como força de trabalho. Em grandes grupos, com separação de sexos, os judeus aptos para o trabalho serão utilizados nessas regiões para construção de estradas, processo durante o qual indubitavelmente um grande número deles morrerá naturalmente.
Quanto aos restantes, os que conseguirem sobreviver a tudo isto, mostrando fazer parte, sem margem para dúvidas, do grupo mais resistente, devem ser tratados de forma adequada, uma vez que representam uma selecção natural, ou seja, células que, uma vez libertadas, vão originar nova germinação do povo judeu (v. a experiência da História).


"A experiência da História": a História mostrou que sempre que houve complacência com os judeus, sempre que se abriram excepções, eles "germinaram" de novo a partir das "células" que puderam escapar. Esta reunião decorre já na fase em que há uma disposição muito firme de resolver o "problema" de uma vez por todas. Sem excepções, sem dar a este povo qualquer hipótese de renascimento na Europa.
Mesmo que custe imenso a cada um dos agentes, mesmo que pareça desumano e cruel, o mais importante é não esquecer nunca que há um valor mais alto que todos os outros, e que nos exige todos os sacrifícios: resolver definitivamente o "problema dos judeus", chegar à "solução final".


É esta a lição da Conferência de Wannsee: cuidado com os valores mais altos que sobre a nossa consciência se alevantam!

***

Nota à margem: em busca de uma boa tradução da acta, encontrei um site em português onde se rebatem alguns dos argumentos dos revisionistas. Para os curiosos, está aqui ( Nizkor Project ).

8 comentários:

Gi disse...

Há um bom filme chamado Conspiracy que vi há anos sobre esta conferência.

abrunho disse...

gostei imenso deste poste

Helena Araújo disse...

Gi,
hei-de procurar.

Abrunho,
obrigada! Estava a escrever e a lembrar-me de uns posts que fizeste sobre a loucura do Ruanda.

Rita Maria disse...

Acabei por nao perceber bem se aquela parte da situaçao dessagradável se tinha dado mesmo outro dia ou se era parte da história...

Helena Araújo disse...

Rita,
foi durante essa visita guiada.
O monitor estava a explicar a dificuldade de decidir se uma pessoa tinha cara de judeu ou não, e apontou para um dos polícias para dar um exemplo. Os colegas fizeram uma gracinha, e ele ficou furioso.
O que foi incrivelmente desagradável foi o ódio no seu olhar.
Afinal de contas, qual é o problema de alguém dizer "este aqui, está na cara que é judeu"?

Rita Maria disse...

Se calhar ele achou que nao era coisa com que se brincasse? Eu sou sempre optimista...

Helena Araújo disse...

Eu acho que ele estava mais com cara de "nem a brincar, ouviram?!!!!"

Uma vez, nos EUA, um professor engraçado que eu tinha esteve entretido a dizer-nos quem é que não era branco naquela sala. Olhou para mim, "you are black".

Fiquei surpreendida - vê lá tu, passei a minha vida toda enganada! - mas não me incomodou.

A diferença deve residir na história da Alemanha. Ainda há 65 anos te matavam, a ti, à tua avó, aos teus filhos, só porque tinhas sangue judeu. Muita gente acreditava que os judeus são um terrível mal (acreditava? infelizmente, acredita). E muita gente ocultava desesperadamente que havia, várias gerações atrás, um judeu na família.
Foi apenas há 65 anos. Alguma coisa terá sobrado, que torna muito incómodo a gracinha de "você, vê-se logo que é judeu".

E depois, se te dissessem que se vê logo que tu és judia: achavas que era um elogio ou uma ofensa?

(enfim, tu, se bem te conheço, não acharias uma coisa nem outra)

Rita Maria disse...

Dizia "Ai, que giro, dantes tomavam-me sempre por francesa". Agora acho que o facto de escolherem antes italiana é mis um sinal de que peso quinze quilos mais, mas de resto confesso que nao achava nada...se calhar porque, dos judeus que conheço, ou melhor, das judias que conheço, nao consigo tirar um "tipo" com o que pudesse ser parecida. Mas pensando numa delas, ficava encantada com o elogio...