06 novembro 2014

a insustentável leveza do ser


em cada esquina espreitam várias direcções


Li a Insustentável Leveza do Ser há quase trinta anos, e dele trouxe comigo o apontamento sobre a vida ser um ensaio geral em frente ao público, um esquisso que não podemos refazer. O Milan Kundera é que sabe!, pensava eu, cheia de admiração.
Por essa altura havia também um poema de Sebastião da Gama que ressoava em mim:

Trago no sangue o mistério
daquele resto de estrada
que não andei...

E era talvez ali
que eu ia ser feliz


Se eu soubesse o que sei hoje!

Hoje faz precisamente 25 anos que cheguei à Alemanha. Por esses dias tinha saído o filme "A Insustentável Leveza do Ser" e o Joachim disse-me que a Tereza era muito parecida comigo. A Tereza era a Juliette Binoche com a minha idade dessa altura, de modo que das duas, uma: ou o Joachim gostava mesmo muito de mim, e portanto era boa ideia eu ir para a Alemanha, ou ele já nem se lembrava de como era a minha cara, e portanto era boa ideia eu ir para a Alemanha.

A verdade é que tomei esta decisão como costumo fazer: atiro-me de cabeça, e depois logo se vê.

Os primeiros tempos foram muito difíceis. Aprender a língua, aguentar o frio (quem é que se lembra de emigrar para a Alemanha no princípio do Inverno?!), tentar arranjar trabalho. As diferenças culturais, também - não por eles serem diferentes, mas por eu me sentir deslocada na minha própria diferença. Muitas vezes me senti nua, despida dos hábitos inconscientes que me davam segurança. Por exemplo, ao entrar no autocarro vazio, de manhã, e ter de decidir se dizia "bom dia" ao condutor ou não. Tudo tinha de ser apreendido, medido, comparado, reajustado. Pensava muitas vezes no que tinha deixado para trás - e o que mais me doía era o trabalho, sobretudo o ambiente de trabalho que deixara em Portugal, e que na Alemanha não foi nunca possível. Muitas vezes comparei a estrada que percorria com aquela que podia ter percorrido.
Não foi fácil. Valeu-me esta teimosia de ser feliz - não sei se é boa ou má, mas é minha, e tem-me permitido atravessar as dificuldades com um passo leve.

E depois a vida foi acontecendo, e cheguei aqui onde estou hoje. Faz agora sete anos que vivo em Berlim, e não gostaria de sair desta cidade para mais lado nenhum. A não ser para Portugal, alguns meses por ano.

Vinte e cinco anos mais tarde, sei que o mistério daquele resto de estrada é uma ilusão. O que mais há é restos de estrada que não vamos nunca percorrer. Sei que é bom que a vida seja um esquisso - não teria pachorra para a passar a limpo uma e outra vez, ia parecer o "Groundhog Day". Prefiro andar para a frente, sabendo que em cada momento faço o melhor que posso, segundo as minhas circunstâncias. Sabendo que no dia seguinte a vida recomeça de novo, como uma página (quase) em branco. Para eu fazer os esquissos que quiser e de que for capaz.

**

Logo à noite vamos os quatro à Filarmonia: a Nona de Beethoven, em minha homenagem, hehehe.
Quer dizer, ahem, para festejar a queda do muro, que aconteceu três dias depois de eu ter chegado. Na verdade, este é o primeiro de quatro concertos dos filarmónicos para comemorar essa data histórica.
O problema é que estou com uma infecção de garganta que nem sei. Se me virem lá com os olhos muito congestionados, não é emoção, sou só eu a tentar controlar a insustentável leveza de um ataque de tosse.


3 comentários:

Anónimo disse...

Muitos parabéns pelos 25 anos de Alemanha e pela sensibilidade.

Desejo-te um concerto fabuloso.

Helena Araújo disse...

Obrigada, Lena.
Concerto para orquesta, coro, e tísica... ;)

Gi disse...

Comecei a ler de cima para baixo, e cheguei agora a este post.
Parabens pelo aniversário da tua chegada à Alemanha, e pelo da tua chegada a Berlim.
Eu admiro muito as pessoas que têm coragem para mudar completamente de vida... Como tu.
Bj, e as melhoras.