15 janeiro 2017

olha para o que digo e não para o que faço

 Um dos argumentos que mais me incomoda num debate é o que aponta a diferença entre o que uma pessoa diz e o que faz. Como se o facto de alguém agir de modo diferente daquilo que propõe bastasse para tirar valor à proposta.

Mal iria o mundo se, em vez de se orientar pelos melhores princípios, optasse por se medir pelo alcance dos gestos de quem ousa formulá-los - é a diferença entre atar o arado às estrelas ou aos cordões dos sapatos.

Não sei se as pessoas recorrem a este tipo de argumentação para impedir o debate ou se têm prazer especial em humilhar os outros. Mas sei duas coisas: argumentar assim não ajuda causa nenhuma, excepto a da cacofonia no espaço público, e ninguém está livre de ser alvo deste tipo de ataques quando apela para um mundo melhor. Por muito exemplar que seja o seu comportamento, haverá sempre maneira de virar contra si aquilo que diz. Não, ninguém está livre disso, nem sequer Jesus Cristo - sobre o qual há um certo consenso de ter sido uma pessoa realmente especial e um grande exemplo para todos.

Imagino Jesus a tentar fazer-se ouvir hoje, e o ruído das redes sociais a desvalorizar o discurso com base em insinuações e acusações sobre o seu comportamento:

Jesus: "quem nunca pecou, atire a primeira pedra" / O ruído: "o que tu queres sei eu! que tu gostas é das mulheres da laia desta, estas desavergonhadas sem moral - esta aqui, está-se mesmo a ver que logo à noite já te vai pagar em géneros, é para isso que a proteges!"
Jesus: "perdoai aos vossos inimigos" / O ruído: "ah! dessa não te lembraste tu quando te deu para arrear sem dó nem piedade nos vendedores do templo, não é?"
Jesus: "deixai vir a mim as criancinhas, não as impeçais..." / O ruído: "olha-me este! a gente bem desconfiava que ele andava metido com o outro, aquele Pedro, e afinal é verdade, e - está-se mesmo a ver - são pedófilos!"
Jesus: "...porque quem não for como as crianças não entrará no Reino dos Céus." / O ruído: "hades, hades. claro, um vadio inútil que anda por aí de casa em casa, a viver do esforço dos outros, não admira que tenha estas ideias tolas. vai trabalhar, malandro! arranja uma família, torna-te responsável! cai na real, ó lírico!"
Jesus: "apartai-vos de mim, malditos (...); porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; era forasteiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; enfermo, e na prisão, e não me visitastes." / O ruído: "estás a falar comigo?! ao teu amiguinho, o cobrador de impostos, não vais pedir tu! ele é que tem o dinheiro todo, ele que ajude! para mais, andas para aí a armar-te que és o filho de Deus. vai pedir ao teu paizinho, ele que resolva!"

Nem Jesus se livraria de ser humilhado. Aliás: não se livrou.

Insisto: olhemos para o que as pessoas dizem e não para o que fazem. Discutamos as ideias e a justeza dos apelos e das propostas, em vez das limitações (reais ou imaginadas) da pessoa que os verbaliza.




5 comentários:

Gi disse...

Tenho de discordar, Helena.
É muito bonito defender as mais belas utopias sem sair do nosso egoísmo, mas quando não somos capazes de fazer os sacrifícios e os esforços que essas utopias exigem não se pode pedir aos outros que as façam.
Podemos, isso sim, admirar e respeitar quem faz esses esforços e sacrifícios de que se calhar gostaríamos de ser capazes.
Falo, no entanto, só por mim.

Helena Araújo disse...

Olá Gi,
desculpa só responder agora.
Admirar e respeitar quem vai mais longe que eu: com certeza!
Desvalorizar as palavras de alguém só porque essa pessoa não consegue ir tão longe como entende que devia ser o caminho, em vez de aceitar o que ela diz como inspiração para eu própria ir mais longe: pronto, está bem, não vamos concordar nisto. :)

Júlio de Matos disse...



Eu concordo, Helena. O detestável argumentário "ad hominem" é um instinto básico de simplórios e de cobardes.

É usualmente caricaturado no clássico exemplo de quem critica os críticos de Cinema por nunca terem realizado Filmes, ou os críticos de Futebol por nunca terem jogado à bola. Ou então, que denigrem a Moral religiosa por haver Padres pedófilos.

Uma discussão inútil...

Helena Araújo disse...

Pois, tenho estado a pensar nessa hipótese de um padre pedófilo pregar que a pedofilia é pecado. Não há como não lhe dar razão. E seria um erro alguém argumentar que se o padre faz também os outros podem fazer.

Gi disse...

Helena, não estou a ver um padre pedófilo a pregar contra a pedofilia; mas prega, certamente, a favor da castidade e da maior disponibilidade dos padres solteiros, que é o que a Igreja propagandeia, e aí podes perguntar se estará certo defender esses valores tão extremos, e se não será melhor permitir aos padres uma vida sexual e familiar normal.

O meu argumento é precisamente na direcção de não impor objectivos pretensamente ideais quando na nossa vidinha não somos capazes de nos aproximarmos deles. Não quero dizer que não vejamos valor nesses ideais, mas que em vez deles punhamos como metas outros mais exequíveis.

Desculpa, talvez não esteja a conseguir transmitir bem o que penso.