23 janeiro 2017

retalhos da vida de um tradutor

Para fazer um bom trabalho da tradução é preciso entender o texto e o seu autor. O trabalho do tradutor é, antes de mais, de enorme atenção. E o de um tradutor simultâneo é ainda mais difícil, porque para ser bem feito obriga a uma grande rapidez de avaliação das pessoas e das situações.

Norbert Heikamp faz há dezenas de anos interpretação simultânea de discursos de políticos em directo na TV. Foi ele quem traduziu na televisão alemã o discurso da tomada de posse do Trump (*). Numa entrevista ao Spiegel fala da dificuldade do seu trabalho, nomeadamente com Trump. Traduzo (rapidinho) metade da entrevista:

Spiegel Online: O que é tão difícil no trabalho com os políticos?

Heikamp: Repare no Barack Obama a discursar: a cabeça move-se da direita para a esquerda. Ele lê do teleponto, e por isso fala mais depressa do que se estivesse a discursar sem texto escrito. Muitos políticos fazem isso, o que torna o nosso trabalho muito difícil. Só aguentamos cerca de 15 minutos, depois tem de ser outra pessoa a fazer o trabalho. E o que é especialmente difícil é quando a pessoa diz o contrário do que se esperava.

Spiegel Online: Por exemplo?

Heikamp: Quando Boris Johnson, a seguir ao voto no Brexit, disse que não queria ser o novo primeiro-ministro, traduzi o que ouvi mas estava inquieto: será que ouvi bem? Ou quando Silvio Berlusconi disse, a seguir ao terramoto, que os italianos não se importavam de viver em tendas, porque já conhecem isso das férias. Uma pessoa pergunta-se: será que ele disse mesmo algo tão cínico? No caso de Trump, tenho permanentemente esses problemas.

Spiegel: Que problemas, no caso de Trump?

Heikamp: Trump pode arruinar a fama de um bom tradutor, porque contradiz-se frequentemente em pouquíssimo tempo, o que pode levar o ouvinte a pensar: "mas que disparates está este tradutor a dizer?" Trump faz afirmações diametralmente opostas aos seus ministros, e salta de um tema para outro. Começa por ralhar contra os assassinos que, segundo ele, há na indústria farmacêutica, para logo a seguir falar do comércio livre. Faz associações espontâneas, é absolutamente imprevisível. O tradutor tem de estar extremamente atento. 

Spiegel Online: Trump é a excepção?

Heikamp: De certo modo, sim. A maior parte dos políticos cuidam de ter um discurso racional. Apresenta-se um problema e procura-se uma solução. Trump, ao contrário, espalha inúmeras granadas de fumo. Semeia deliberadamente a incompreensão. Isso ultrapassa os nossos hábitos de raciocínio. É como no dadaísmo. Não se pode prever o que vem a seguir. O que torna a tradução extremamente difícil.

Spiegel Online: A linguagem de Trump é frequentemente rude. Para si, é difícil repetir essa linguagem?

Heikamp: Parece-me muito importante traduzir, por exemplo, as frases sexistas de Trump como "ir-lhes à rata" - mesmo se não digo essas frases com gosto. Mas é assim que fica claro que tipo de homem é, e como age.



(*) Agora é que me lembro que devia ter visto a tomada de posse na televisão alemã! Ia ficar a saber como é que na Alemanha se deve dizer "great" e "big". Quer dizer: como é que um presidente da república alemão diria "great" e "big". E podia fazer o mesmo para francês, espanhol, português. Ia aprender imenso. Ou talvez não, talvez não haja correspondência desses conceitos para o presidente-da-repúbliquês dos outros países. Enfim, espero que não haja. Era uma tragédia se agora todos os presidentes desatassem a querer fazer o seu país great again. A Península Ibérica, por exemplo: lá voltávamos ao tratado de Tordesilhas. Mas não sei se os espanhóis desta vez se deixavam enganar. Lá está: a História repete-se como farsa - desta vez davam-nos os Açores, e já íamos com sorte. Mas ficavam com a parte do mundo que inclui o Trump, hehehe, sempre queria ver como é que diziam ao Trump que great, o que se chama great, é sob a égide do rei e senhor Dom Filipe de Espanha. 

Sem comentários: