21 setembro 2017

São Paulo, Rembrandt e a «cura gay»

Copio para este blogue um texto excelente do Frederico Lourenço (desculpem o pleonasmo), publicado no facebook.

Só queria acrescentar uma ideia para os cristãos: deixemos entrar a luz de Cristo. Não é a Igreja, não é a terrível História da Igreja, não é a tralha acumulada em 2000 anos de Igreja. É a essência da mensagem de Jesus Cristo.

(Escrevo isto, e fico a pensar num comunista que ouvi há dias, a dizer que a ideia de comunismo é boa, as pessoas é que não a souberam aplicar, e que devíamos tentar outra vez porque da próxima vez é que vai correr bem...)


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Frederico LourençoSão Paulo, Rembrandt e a «cura gay»



Se tivessem dito ao fervoroso adolescente católico que eu era nos anos 70, eu não teria acreditado. Se, nos anos 80, durante tantas conversas com amigos padres, nos tivessem dito - também não teríamos acreditado.

O que se passa com este século XXI, que antecipávamos esperançosamente como o triunfo do Iluminismo, como o século das Núpcias da Fé e da Razão? Porque voltámos de repente à Idade Média, neste ano em que celebramos os 500 anos da Reforma protestante, o evento que deu início à Idade Moderna?

No país da Ciência que levou o ser humano à Lua, senta-se hoje na Casa Branca um presidente apoiado por baptistas e pentecostais, eleito por 80% dos evangélicos americanos. Esta administração americana dá cobertura e apoio às versões mais retrógradas e obscurantistas do cristianismo: ao cristianismo dos bilionários (como Betsy de Vos), dos supremacistas brancos do Southern Baptist Convention. Já foi divulgado que, uma vez por semana, há uma aula de estudos bíblicos na Casa Branca, onde um pastor milionário ensina aos bilionários da administração Trump a ler a Bíblia sob o prisma da teologia da prosperidade, do criacionismo, da negação completa da Razão.

Ganha força, no século XXI, a superstição que o século XVIII (e ainda mais o século XIX) veio refutar: a de que a Bíblia nos dá a ler, sem erro, a palavra «inerrante» de Deus. Cada vez mais se produzem e distribuem Bíblias pelo mundo inteiro em que todos os avanços do estudo crítico-histórico da Bíblia são postos de lado. Voltamos, nalgumas Bíblias do século XXI (inclusive em português), a ler uma absurdeza já refutada em 1672 por John Marsham, de que o livro de Daniel foi escrito no século VI a.C. (e não, como concordam os estudiosos sérios, no século II).

Temos produzidas e distribuídas em massa edições da Bíblia que nunca dão a entender aos leitores que é impossível que São Paulo tenha escrito as 13 cartas que lhe são atribuídas no Novo Testamento: na melhor das hipóteses, terá escrito 7. E quantos católicos e protestantes sabem que é possível argumentar, como fez Bruno Bauer em 1852, que todas as cartas atribuídas a Paulo no Novo Testamento são falsificações escritas em nome de Paulo no século II, posição crítica retomada em 1995 por Hermann Detering e em 2012 por Robert Price (remeto para a Bibliografia do 2º volume da minha tradução do Novo Testamento)?

O estudo sério sobre a Bíblia que se faz nas universidades não-católicas e não-evangélicas está cada vez mais a ser apagado e afastado da consciência dos cristãos, substituído por um discurso de aterradora ignorância e de imposição de uma agenda política colada ao catolicismo na Polónia, colada ao protestantismo baptista nos EUA e colada ao protestantismo evangélico no Brasil.

A Bíblia prestou-se desde sempre a ser instrumento daquilo que o poder político e religioso lá quis projectar. A distopia teocrática por que alguns pugnam na Polónia, no Brasil e nos EUA é algo que temos de combater com os instrumentos da Razão, com o estudo da História, com o pensamento crítico. E temos de combater essa realidade distópica com o próprio estudo crítico-histórico da Bíblia. Informarmo-nos, hoje, sobre a Bíblia é verdadeiramente urgente.

Pois do mesmo modo como olhamos criticamente para o retrato fantasista de São Paulo pelo pintor seiscentista Jan Lievens (que pôs Paulo anacronicamente a escrever num livro cosido e encadernado, objecto que não existia em vida de Paulo), temos de olhar criticamente para o retrato fantasista que os movimentos políticos distópico-teocráticos nos querem impor dos textos que servem de base ao cristianismo.

Que sustentação bíblica pode haver para a «cura gay», se nós não sabemos quem escreveu, nem em que circunstâncias, nem com que intenção, os poucos versículos do Antigo Testamento (equivalentes a pouco mais de 30 palavras num universo de 600,000) que condenam a homossexualidade? Nem sabemos como foram colados os conjuntos de frases desgarradas que são tantas vezes as cartas atribuídas a Paulo?

Há um debate aceso nas grandes universidades do mundo (Harvard, Yale, etc.) sobre se as frases de Paulo podem ser interpretadas como conveio durante séculos que fossem explicadas. E continua o debate - o livro de Price de 2012 é prova disso - sobre quem escreveu as cartas atribuídas ao apóstolo.
Sabemos que o pintor neerlandês Jan Lievens fez tudo o que pôde para pintar no estilo de Rembrandt - e pode ter convencido, em tempos, algumas pessoas. Mas a História da Arte tem hoje métodos científicos que permitem distinguir Rembrandt dos falsários que pintaram de modo a se fazerem passar por ele.

Da mesma maneira, temos de dar ouvidos aos grandes estudos críticos sobre a Bíblia, à grande bibliografia produzida desde o século XIX, que nos distingue as autorias reais e imaginárias dos livros da Bíblia.

Não nos deixemos levar por esta onda neo-medieval. Não baseemos decisões sobre a vida de pessoas que vivem no século XXI, em democracias laicas cuja implantação foi um dos maiores triunfos da história da humanidade, num Livro sobre cujas autorias, cronologia e coerência interna não temos a mínima certeza.

Demos a Rembrandt o que é de Rembrandt - e a Paulo o que é de Paulo. Não voltemos, em 2017, à leitura obscurantista da Bíblia que se fazia até ao século XVII. Abramos a janela da Razão e deixemos entrar a luz.

imagem: São Paulo por Jan Lievens (século XVII)

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